“Ainda Estou Aqui” é tudo isso e mais um pouco do que você ouviu a crítica falar e escrever.
Fiz uma pausa, e fui ver a sessão de estreia de “Ainda Estou Aqui”. Aviso que meu reportório técnico é limitado. Deixo esta outra análise para os críticos experientes. Neste texto, falo como historiador e pessoa humana que sou.
Numa perspectiva histórica, o roteiro do filme é rico e denso em detalhes, contudo, envolvente/comovente. Por isso, consegue guiar o público por uma jornada e reflexão profunda sobre o Brasil. Vale lembrar, que o filme de Walter Salles é inspirado no livro escrito pelo Marcelo Rubens Paiva.
O ponto de partida é o cotidiano de uma família que tem sua rotina violentamente interrompida. Aos poucos, o cotidiano da cidade do RJ e o cotidiano daquela família vai sendo atravessado por outras rupturas bruscas e violências protagonizadas pela ditadura militar.
Gradualmente a leveza e alegria daquela casa vai sendo capturada. Até que as cortinas se fecham, impedindo que a luz do sol anuncie um novo dia. Enquanto a vida tenta seguir, uma sequência de prisões, exílios (alguns não conscientes), interrogatórios, torturas, mortes e ocultação de corpos se sobrepõem como parte de um outro cotidiano sentido e vivido por alguns, mas não por todos.
Fiquei profundamente emocionado com o “não dito”, com “o choro que não foi visto”, e com “a dor que não foi vivida” diante das lentes e diante dos filhos de Eunice. “Ainda Estou Aqui”, rompe com a obviedade porque a dor precisou ser acolhida e vivida de uma/algumas outra(s) maneira(s). Uma vivência, pode ser constituída por muitas outras temporalidades e camadas, estas, que por sua vez, não se deixam ser capturadas por expectativa ou obviedade alguma.
Diante da tortura, o silêncio, o não dito e o sorriso são como estratégias para que a vida pudesse de alguma forma encontrar caminhos para sobreviver ao caos e a experiência indescritível, que é ter sua família como alvo de um projeto político de desumanização. “É preciso dar um jeito, meu amigo”.
As reflexões e ecos sobre “Ainda Estou Aqui”, seguiram na minha cabeça e em meu coração. Depois que vi o filme, demorei um pouco a dormir... fiquei pensando, nas muitas camadas que esse filme me despertou: A memória da tortura não se curva ao tempo. Sobreviver à tortura é possível? Como a gente lida com a negação do direito ao luto?
Não sei se estou certo disso, mas deduzi que o filme não foi pensado apenas para “nós outros”. Uma vez que o filme não alcançará apenas os amantes da sétima arte, ou um público que defende e que ama a democracia. Penso que esse filme também foi feito para ser visto pelos torturadores. Explico.
Se em meio às inomináveis violências, continuar vivendo é preciso. Mas como?
É aí quando o público espera o óbvio, pois, a obviedade do drama tem sua própria sequência e estética. Mas estas, aqui foram modificas, e o ato de viver o drama já não é mais o mesmo. É possível sobreviver a tortura? “Ainda Estou Aqui” responde enfaticamente: É necessário sobreviver à tortura. É necessário resistir. É necessário sorrir: “Sorriam!”
Sorrir é mais que resistir. Sorrir é ser subversivo! Sorrir é romper com a lógica da tortura da ditadura militar.
Sorrir é uma reafirmação que apenas os sobreviventes, e as família daqueles que foram torturados e assassinados pela ditadura militar podem fazer na cara do torturador. E quando assim o fazem, estão dizendo: “Ainda Estou Aqui”, teimando, lutando e vivendo por justiça.
Não chorar, não significa não sentir dor. A lágrima não secou, ela está ali. “Não é necessário chorar para sofrer”. Como bem disse Dilma Rousseff.
O sorriso de uma família que foi sequestrada e torturada por militares, não é apenas um ato de resistência. Repito, sorrir é pura subversão da lógica do regime militar. O enfrentamento à ditadura e a luta por justiça, é abordado em “Ainda Estou Aqui”, através de um fio condutor sensível que atravessa o tempo. O próprio filme se constitui em si, como uma continuidade desse sorriso, dessa luta e dessa vida por justiça.
As descontinuidades, os cortes e as rupturas nas cenas, o não acesso completo ao medo, a não captura completa da experiência de dor, e o não enquadramento do desespero é proposital. Não porque não cabe na tela. Não é porque as pessoas que estão assistindo não suportariam. O motivo é outro. “Ainda Estou Aqui”, além de ser uma obra de arte, também é discurso e ato político.
Do mesmo modo, a família que foi privada de velar e sepultar o corpo de Rubens Paiva, é a mesma que não chora diante da tortura, que não se entrega ao luto. Logo, o que um torturador mais anseia é assistir a dor, testemunhar o desespero, celebrar a angústia de quem foi sequestrado. Pois, a memória da tortura sequestra quem foi alvo da barbaridade. E este não se encerrou com a campanha pelas “Diretas Já”, nem mesmo com a Constituição Cidadã de 1988.
No lugar da rendição diante da barbárie, temos a celebração da vida. Diante do sequestro e das perseguições, temos um banho de mar, uma taça de sorvete. Diante da tortura, do assassinato e da ocultação de cadáveres, temos uma família reunida na mesa. Diante da estrutura e logística da ditadura militar, temos uma mulher lutando por justiça.
“Ainda Estou Aqui”, comunica que a memória da tortura permanece viva, mesmo quando a faculdade da lembrança não é mais a mesma. Para sobreviventes, sempre haverá um “lugar de memória”. Mesmo com o passar do tempo e com uma doença neurodegenerativa, que compromete as funções mentais, o sorriso desenhado no rosto de quem sobrevive, tem o poder de fazer ruir a estrutura política da ditadura militar que usou a tortura como instrumento de controle. Mesmo assim, foi derrotada, condenada publicamente por seus crimes.
Não lembro de outro filme que tenha me causado tal impacto ao abordar esta temática. “Ainda Estou Aqui”, conseguiu traduzir para o mundo que a ditadura militar brasileira foi um instrumento de promoção da desumanização tal qual foi o nazismo alemão. Mais que isto, os sobreviventes da ditadura militar, por meio de sua luta, sobrevivência e experiência dialoga com mundo, denunciando investidas totalitaristas e projetos políticos autoritários que insistem querer sequestrar nosso futuro.
Obrigado, Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva.